No artigo “A noite escura da alma brasileira”, argumentei que, diante da constatação de que estamos doentes de Brasil, nossa cura requer crescermos para dentro – tanto individual como coletivamente. A crise que atravessamos como país nos convida a entrarmos em contato direto com traços de nossa vida interior que costumam ser mais difíceis de reconhecer e lidar.
Eis que entramos nesta situação de pandemia global. Um vírus nos invadiu, asfixiou dezenas de milhares de vidas, desmontou os planos de futuro e intensificou o processo de degradação do sistema político. Mas também nos trouxe uma importante lição sobre interdependência, mostrando como o cuidado de cada um consigo mesmo é fundamental para o bem-estar de todos.
O fato de o Brasil caminhar para ser o novo epicentro global da pandemia mostra que a nossa verdadeira doença já nos habitava antes de o vírus chegar. As feridas agora expostas são antigas – o racismo, a desigualdade social, o aparelhamento do Estado, o descaso com os indígenas. A novidade é que o impulso de morte, que estava oculto em nós, se tornou explícito como nunca antes.
Porém, muitos ainda se encontram demasiado assustados, anestesiados ou preocupados em sobreviver para entrar em contato com a dor da morte. Enquanto os poderes entram em conflito, nós, o povo, estamos sem reação. Se já estávamos desmobilizados pela frustração com as tentativas anteriores de mudança, agora não podemos sequer ir às ruas, muitos de nós estamos economicamente falidos, nossos líderes estão desunidos, estamos sem uma visão de futuro comum para a qual mirar.
Neste pesadelo sem fim em que o Brasil está mergulhado, cabe então fazer a pergunta: se o Brasil tem cura, o que está ao nosso alcance fazer agora para tratar nossa doença?
A intensa limitação que a pandemia nos impõe só reforça o entendimento de que o caminho possível e necessário é o de crescermos interiormente. Nós, brasileiros, precisamos admitir que não adianta mais esperar alguma salvação vinda de fora e encarar nossa dificuldade estrutural de olhar para dentro. É cultivando a nós mesmos que podemos encontrar o impulso de vida que aguarda pacientemente o momento de voltar à superfície.
Quando estudamos nossas dinâmicas interiores, podemos entender que os pesadelos têm uma função importante de nos mostrar situações que colocam ou podem colocar nossa vida em risco. Como bem nos explica o neurocientista Sidarta Ribeiro, em sua magistral obra O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho, os pesadelos nos ensinam a não morrer.
No artigo anterior, propus que a sombra principal que esta travessia nos convida a olhar é a da ignorância. Muitos já afirmaram que “o Brasil não conhece a si mesmo”. Nossa ignorância parece ter chegado ao ápice, a ponto de parecer até loucura afirmar que somos parte de um país maravilhoso, com um povo cheio de potencialidades, com riquezas imensuráveis que aguardam para ser descobertas.
Por muito tempo, ressoou em nosso imaginário a noção de que somos o “país do futuro”. Nós já depositamos nossas esperanças em líderes, em partidos, em outros países, em ideologias dos mais diversos matizes. Não há futuro saudável se continuarmos negando o passado que nos adoece.
Esta “noite escura da alma” nos convida a compreender que não faz sentido querermos olhar para o futuro sem compreendermos de onde viemos e tratarmos no presente dos resquícios do passado.
A história da negação de nossas verdadeiras riquezas começou quando as nossas primeiras mães indígenas e negras tiveram suas vidas interiores negadas. Os primeiros brasileiros, sem referências de quem eram suas mães, não sabiam ao certo de onde vinham, quem eram, para onde ir.
Desde as nossas origens, vivemos um conflito entre o Brazil ideal e o Brasil real, no qual o sonho de uns se realiza em detrimento dos sonhos alheios. Até hoje, os índios e os negros continuam marginalizados, e a nação como um todo segue fragmentada por cisões raciais, disputas territoriais, geracionais, de gênero, de classes sociais, religiosas, culturais e ideológicas. Esta é a nossa doença da alma: somos um povo cindido.
E esta cisão se traduz em muitos aspectos de nossas vidas cotidianas, em grande parte de maneira inconsciente. Está na relação entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre chefes e empregados, entre cônjuges, no exercício de nossa cidadania e nas escolhas políticas que fazemos. Está inclusive na relação que cada um estabelece consigo próprio. Todos respiramos o Brasil real por meio de todas as nossas relações, pois no Brasil estamos imersos. Por isso, não temos como ficar imunes às doenças que permeiam nosso tecido social.
O que nossos pajés sempre souberam, que a psicanálise demonstrou ao longo de séculos e que hoje os neurocientistas comprovam é que os nossos sonhos nos trazem as chaves mais confiáveis para escutarmos o nosso inconsciente, que é onde habitam nossas feridas mais profundas.
Na década de 1990, ao analisar o sonho de indígenas, o psicanalista Roberto Gambini identificou um sonho recorrente: o de se encontrarem em situações invertidos – de ponta-cabeça. Da análise deste sonho, ele escreveu O espelho índio: a formação da alma brasileira, uma obra pioneira da busca pela compreensão e a cura destas feridas.
O espelho invertido que ficou registrado no inconsciente coletivo dos indígenas é um dos muitos exemplos da dificuldade que nós, brasileiros, temos de encontrar o valor em quem realmente somos, a exemplo do complexo de vira-latas, que insistimos em ver com um olhar negativo, mesmo sabendo que, na vida real, se trata de um bichinho cheio de virtudes. Até mesmo o Cruzeiro do Sul de nossa bandeira está ao contrário – como se estivéssemos olhando para o nosso céu pelo outro lado da constelação.
Mas a esperança de que possamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima nunca deixou de dar claros sinais de vida, como bem nos mostra o vitorioso samba-enredo da Mangueira:
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
E como é que desviramos esta realidade do avesso, mudamos esta história? Os sonhos, além de sinalizar caminhos de autocura, nos ajudam a imaginar possibilidades completamente novas para modificar nossa realidade presente.
Em O vazio no poder: a reinvenção do ser político (disponível gratuitamente neste link), procurei demonstrar como as mudanças da história são iniciadas por indivíduos que, depois de entrar em contato com alguma ferida latente no mundo, sentem o desejo profundo de se doar para tratá-las. Por acreditar em seus sonhos, criam novos caminhos, onde formam pequenos grupos que se organizam em torno de causas comuns. Esses movimentos crescem, criam e ocupam brechas na sociedade e no sistema político, até que convençam a maioria da sociedade de que este sonho deve fazer parte de seu destino.
A história do povo Yawanawa ilustra bem esse poder ativador e organizador dos sonhos. Quando um grupo de pastores passou a catequizar e proibir as suas práticas, por anos a fio, dois pajés mantiveram suas práticas espirituais em sigilo, nas profundezas da floresta. Ao longo dos anos, compartilharam seus ensinamentos com o jovem Biraci, incentivando-o a estudar e ir à cidade se formar. Anos depois, Biraci retornou ao seu povo e os convenceu a seguir um novo caminho, que honrasse suas raízes. Os pastores foram expulsos, o álcool, o açúcar e a televisão foram banidos, seus costumes foram resgatados. Hoje, os Yawanawa viajam o mundo compartilhando seus belos cantos e medicinas espirituais, sendo também uma fonte inspiradora para outros povos indígenas.
Este exemplo de superação mostra que, dentro de nós, estão os recursos de que precisamos para superar a realidade presente e manifestar um futuro radicalmente diferente.
Neste momento, muitos de nós não desejamos voltar ao “normal”, e estamos sonhando novos sonhos, muitas vezes surpreendentes e até mesmo estranhos. Sonhos noturnos que trazem revelações importantes sobre nós mesmos, e sonhos diurnos de criarmos uma realidade diferente da que vivíamos antes da pandemia.
Como já dizia o poeta, “sonhar é acordar para dentro”. Os sonhos revelam os desejos da alma de um futuro possível e são uma chave para reconhecermos em nós forças que transformam a realidade. Seja para curar nossas feridas, seja para manifestarmos desejos autênticos ou ainda para encontrar novos caminhos para nos reorganizarmos a favor da vida e do bem viver, os sonhos estão disponíveis para todos nós.
A cura do Brasil passa necessariamente por contarmos a nós mesmos uma nova história, uma perspectiva que contemple os sonhos de todos. Nossos sonhos merecem o nosso sim. O que nos impede de sonharmos mais alto?
Eduardo Rombauer, 40, é cidadão de Paraty (RJ), Mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University, facilitador e consultor em desenvolvimento humano, membro do Fórum do Amanhã e autor de “O Vazio no Poder: a reinvenção do Ser Político”. Site: www.eduardorombauer.com