O amor como princípio

Sejamos nós o amor que queremos ver no Brasil.

Já se passaram 200 anos da nossa Independência e ainda o Brasil sofre por falta de união. E seu símbolo máximo – a bandeira verde, amarela, azul e branca – virou um símbolo também desse conflito. Isso não é justo nem com nossa bandeira nem com nossa nação.

Em 1889, o primeiro presidente da República brasileira, Deodoro da Fonseca, convocou uma comissão para criar um símbolo para o novo país. Escolheram para inspirar a nossa bandeira o lema tirado da obra de um filósofo: “O Amor por princípio, a Ordem por base; o Progresso por fim.”

Mas, na hora de desenhar a bandeira, a comissão tomou a decisão de não incluir nela justamente o que deveria estar no princípio de tudo: o Amor ficou de fora. Há quem diga que isto se deve ao fato de que o Amor, naquela época, pertencia ao domínio da religião, e que não caberia na bandeira num momento de afirmação do estado laico. 

Mas o fato é que a bandeira já nasceu incompleta. E a noção do que significa Amor evoluiu – se expandiu – de lá para cá. Hoje sabemos que Amor é muito mais do que um sentimento, e que vai muito além da esfera íntima e da religião. O Amor é uma força de tamanho imensurável, e pode ser compreendido como a própria fonte da vida. 

Se a Ordem não deriva do Amor, ela corre o risco de resultar em autoritarismo e opressão. Se o Progresso não parte do Amor, aonde ele pode nos levar, e ao custo de quanta destruição?

Mas o amor persiste e encontrou outros caminhos para florescer – a Constituição de 1988, por exemplo. Ela nos conclama a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Muito antes da Constituição, nosso Hino já proclamava: “Brasil de Amor eterno seja símbolo”.

Neste momento histórico, em que as nossas feridas afloraram na sociedade, temos a oportunidade de estabelecer um novo começo. E o que pode nos levar além desta separação que fere a nossa alma? Só o Amor. 

O Amor nos regenera, nos une e dá senso de direção. Neste Dia da Bandeira, dois séculos depois de o Brasil virar uma nação, convidamos os 214 milhões de brasileiros a tomarem uma outra decisão: a de deixar entrar o Amor na bandeira

Escolher o Amor como princípio significa posicioná-lo no centro do projeto brasileiro, daqui em diante. Só com Amor seremos capazes de celebrar em paz o diálogo entre os diferentes e o respeito mútuo na construção de um novo futuro para o Brasil. É o princípio do Amor que deveria reger todas as nossas políticas públicas. Ele precisa estar todos os dias presente em nosso imaginário, e não ser mais esquecido.

“Amor, Ordem e Progresso” é o que deveria estar escrito no centro da bandeira brasileira, para que ela possa voltar a ser o símbolo da união de todos nós.

Vamos juntos levantar a bandeira do Amor até que o Amor esteja em nossa bandeira. Que a palavra Amor tremule nas bandeiras de torcedores, ativistas e patriotas. Mas principalmente: que ela represente o Amor vivo em nós, nos reatando e regenerando nossas relações, formando uma teia invisível e intransponível que nos reúne, revigora e fortalece. 


Todos nós podemos renovar nossos votos de amor ao Brasil. A cada dia, em cada encontro, em cada escolha, em cada vínculo com cada pessoa, animal, ser vivo. Sejamos nós o Amor que queremos ver no Brasil.

Eduardo Rombauer é consultor em desenvolvimento humano, com vasta experiência como facilitador de processos colaborativos. Atuou por vários anos com a formação de novas lideranças e com movimentos de renovação política. Atualmente trabalha como consultor sênior da Reos Partners com a solução de problemas complexos inter-atores.

Eduardo Rombauer possui três livros publicados. O segundo, lançado em 2018 com o título “O vazio no poder – a reinvenção do Ser Político”, oferece uma abordagem radicalmente viva para quem deseja transformar a política e a si mesmo de maneira conjugada. O terceiro, “Construção colaborativa e transformação em governo”, foi publicado em 2022 pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), oferecendo conceitos e ferramentas para incorporar a colaboração na gestão pública.

Dedica-se a pesquisar a Alma Brasileira, e impulsionar iniciativas de amor ao Brasil, e acredita que a Colaboração é uma qualidade estruturante para que possamos alcançar uma nova etapa da Democracia – uma Democracia Colaborativa. Após 4 anos em retiro do ativismo, está aos poucos retornando à esfera pública para defender estas duas causas e realizar cursos e oficinas com base na abordagem que criou e denominou como fenomenologia da alma.

Eduardo é casado com Luma, com quem é pai da Lia e da Aurora. Bacharel em Relações Internacionais pela PUC/SP e mestre em Prática Social Reflexiva pela LMU (London Metropolitan University).

A vitória da Democracia virá com a força Feminina

Nós, a gente brasileira, estamos diante de uma escolha coletiva de vida ou morte. No entanto é possível afirmar que não são duas, mas sim três, as opções que temos diante de nós:

  1. A destruição da Democracia. O candidato a ditador é reeleito, neutraliza o Judiciário, instaura reeleição ilimitada e conquista seu objetivo. Vozes dissonantes são condenadas à obediência, à prisão, morte ou ao exílio.
  2. A sobrevivência da Democracia. Lula é eleito por uma pequena diferença e temos mais 4 anos de luta, com o país cindido e um Congresso tomado por uma aliança entre forças criminosas e reacionárias, até que em 2026 se possa definir o rumo do país por um lado ou por outro desta disputa.
  3. A vitória da Democracia. Lula é eleito com mais de 60% dos votos, graças a uma frente ampla democrática formada com as lideranças dos partidos, das empresas e da sociedade, que em 4 anos consegue imprimir uma série de derrotas às forças tenebrosas que corroem a democracia, principalmente no Congresso Nacional.

A terceira opção parece impossível pelas circunstâncias, mas não devemos pensar assim, pois de fato é a única em que o Brasil retorna à normalidade democrática e ao rumo ao desenvolvimento sustentável, do fim da fome, da redução das desigualdades e de educação e saúde dignos. 

Então, como podemos alcançar a Vitória da Democracia?

Entendo que a frente ampla democrática que está sendo formada na campanha do Lula é o caminho certo. Porém ela precisa se tornar ainda mais ampla e sólida. E quem pode nos criar este amálgama, aliás como já estão fazendo, são as mulheres. 

O Brasil clama por lideranças femininas. O candidato a ditador aproveitou esse fato fazendo uso figurativo de uma mulher. Já no campo democrático, a força feminina nos surpreendeu brilhantemente com a emergência de Simone Tebet.

Com perspicácia e demonstrando uma postura íntegra e um desempenho impecável, Tebet elevou o nível dos debates no primeiro turno e está incidindo para efetivamente tornar a frente democrática efetivamente ampla, ou seja, tornar-se menos polarizadora, mais diversa, mais agregadora, mais pacífica e amorosa. Revela-se como uma porta-voz da lucidez e da visão de futuro que precisamos agora.

Tebet também sustenta a tocha da sustentabilidade levantada por Marina Silva em 2010 e lançada ao chão em 2014, na campanha imoral que destruiu sua reputação política e abriu o precedente para hoje vivermos o incêndio que estamos vivendo. Marina respirou fundo, sustentou-se de pé, para então erguer-se à uma nova altura quando nos mostrou que o perdão, neste momento, é um gesto importante de amor ao Brasil. 

O perdão nos permite ligar nossos corações ao que temos de melhor para oferecer uns aos outros.

Nós homens precisamos aprender a honrar a força e a sabedoria do feminino. As mulheres, muito mais do que nós, sabem dar valor à vida. E agora são elas que estão apontando com mais clareza a direção certa a seguir. Elas precisam estar no palanque, e a elas nós precisamos dar mais ouvidos.

Numa perspectiva civilizatória, entendo que esta situação dramática é também uma grande oportunidade de darmos um passo fundamental para a superação do patriarcado. Esta imagem tão distorcida do que significa ser um homem brasileiro, precisa ser apagada de nosso imaginário. Primeiro sendo derrotada nas urnas, e depois, dissolvida de dentro de cada um de nós.

Aqui quero honrar o amadurecimento de Lula. O homem que, a serviço de um sonho tornou-se um líder de nossa história democrática, é um humano que pode errar como qualquer um de nós, e que portanto merece ter a chance de fazer de novo para dar o seu melhor. Que Lula realize a sua missão, e seja agora o nosso líder na redução da desigualdade social, no fim da fome, e no estabelecimento das bases para um novo patamar civilizatório, a começar pela proteção do meio ambiente e melhoria na educação.

Lula tem na mão a chave para que essas vozes que hoje expressam a força feminina na política, possam abrir a porta do camarim e subir ao palco e convocar-nos para a Vitória Democrática. Que venham Tábata Amaral, Sonia Guajajara, Célia Xakriabá, Carol Dartora, Juliana Cardoso, Talíria Perrone e Sâmia Bomfim, Marina Helou, e tantas outras que ainda vamos conhecer.

Que possamos nos espelhar nessas mulheres luminosas, resgatando com elas a nossa lucidez, a nossa sensibilidade, a nossa compaixão, o nosso senso de cuidado, o nosso amor ao país. Que este coro feminino nos motive a levantar e saltarmos rumo à vitória, daqui a duas semanas. 

O que o Brasil clama, no fundo, é por mais Amor. E quem ama não quer ditadura. 

Eduardo Rombauer, 43, é pai de duas meninas, consultor de desenvolvimento pessoal e social, e atualmente pesquisa a Alma Brasileira. http://www.eduardorombauer.wordpress.com

Sim ao sonho: quando a saída é por dentro

 

No artigo “A noite escura da alma brasileira”, argumentei que, diante da constatação de que estamos doentes de Brasil, nossa cura requer crescermos para dentro – tanto individual como coletivamente. A crise que atravessamos como país nos convida a entrarmos em contato direto com traços de nossa vida interior que costumam ser mais difíceis de reconhecer e lidar

Eis que entramos nesta situação de pandemia global. Um vírus nos invadiu, asfixiou dezenas de milhares de vidas, desmontou os planos de futuro e intensificou o processo de degradação do sistema político. Mas também nos trouxe uma importante lição sobre interdependência, mostrando como o cuidado de cada um consigo mesmo é fundamental para o bem-estar de todos. 

O fato de o Brasil caminhar para ser o novo epicentro global da pandemia mostra que a nossa verdadeira doença já nos habitava antes de o vírus chegar. As feridas agora expostas são antigas – o racismo, a desigualdade social, o aparelhamento do Estado, o descaso com os indígenas. A novidade é que o impulso de morte, que estava oculto em nós, se tornou explícito como nunca antes. 

Porém, muitos ainda se encontram demasiado assustados, anestesiados ou preocupados em sobreviver para entrar em contato com a dor da morte. Enquanto os poderes entram em conflito, nós, o povo, estamos sem reação. Se já estávamos desmobilizados pela frustração com as tentativas anteriores de mudança, agora não podemos sequer ir às ruas, muitos de nós estamos economicamente falidos, nossos líderes estão desunidos, estamos sem uma visão de futuro comum para a qual mirar. 

Neste pesadelo sem fim em que o Brasil está mergulhado, cabe então fazer a pergunta: se o Brasil tem cura, o que está ao nosso alcance fazer agora para tratar nossa doença?

A intensa limitação que a pandemia nos impõe só reforça o entendimento de que o caminho possível e necessário é o de crescermos interiormente. Nós, brasileiros, precisamos admitir que não adianta mais esperar alguma salvação vinda de fora e encarar nossa dificuldade estrutural de olhar para dentro. É cultivando a nós mesmos que podemos encontrar o impulso de vida que aguarda pacientemente o momento de voltar à superfície.

Quando estudamos nossas dinâmicas interiores, podemos entender que os pesadelos têm uma função importante de nos mostrar situações que colocam ou podem colocar nossa vida em risco. Como bem nos explica o neurocientista Sidarta Ribeiro, em sua magistral obra O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho, os pesadelos nos ensinam a não morrer. 

No artigo anterior, propus que a sombra principal que esta travessia nos convida a olhar é a da ignorância. Muitos já afirmaram que “o Brasil não conhece a si mesmo”. Nossa ignorância parece ter chegado ao ápice, a ponto de parecer até loucura afirmar que somos parte de um país maravilhoso, com um povo cheio de potencialidades, com riquezas imensuráveis que aguardam para ser descobertas. 

Por muito tempo, ressoou em nosso imaginário a noção de que somos o “país do futuro”. Nós já depositamos nossas esperanças em líderes, em partidos, em outros países, em ideologias dos mais diversos matizes. Não há futuro saudável se continuarmos negando o passado que nos adoece. 

Esta “noite escura da alma” nos convida a compreender que não faz sentido querermos olhar para o futuro sem compreendermos de onde viemos e tratarmos no presente dos resquícios do passado. 

A história da negação de nossas verdadeiras riquezas começou quando as nossas primeiras mães indígenas e negras tiveram suas vidas interiores negadas. Os primeiros brasileiros, sem referências de quem eram suas mães, não sabiam ao certo de onde vinham, quem eram, para onde ir. 

Desde as nossas origens, vivemos um conflito entre o Brazil ideal e o Brasil real, no qual o sonho de uns se realiza em detrimento dos sonhos alheios. Até hoje, os índios e os negros continuam marginalizados, e a nação como um todo segue fragmentada por cisões raciais, disputas territoriais, geracionais, de gênero, de classes sociais, religiosas, culturais e ideológicas. Esta é a nossa doença da alma: somos um povo cindido. 

E esta cisão se traduz em muitos aspectos de nossas vidas cotidianas, em grande parte de maneira inconsciente. Está na relação entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre chefes e empregados, entre cônjuges, no exercício de nossa cidadania e nas escolhas políticas que fazemos. Está inclusive na relação que cada um estabelece consigo próprio. Todos respiramos o Brasil real por meio de todas as nossas relações, pois no Brasil estamos imersos. Por isso, não temos como ficar imunes às doenças que permeiam nosso tecido social.

O que nossos pajés sempre souberam, que a psicanálise demonstrou ao longo de séculos e que hoje os neurocientistas comprovam é que os nossos sonhos nos trazem as chaves mais confiáveis para escutarmos o nosso inconsciente, que é onde habitam nossas feridas mais profundas. 

Na década de 1990, ao analisar o sonho de indígenas, o psicanalista Roberto Gambini identificou um sonho recorrente: o de se encontrarem em situações invertidos – de ponta-cabeça. Da análise deste sonho, ele escreveu O espelho índio: a formação da alma brasileira, uma obra pioneira da busca pela compreensão e a cura destas feridas. 

O espelho invertido que ficou registrado no inconsciente coletivo dos indígenas é um dos muitos exemplos da dificuldade que nós, brasileiros, temos de encontrar o valor em quem realmente somos, a exemplo do complexo de vira-latas, que insistimos em ver com um olhar negativo, mesmo sabendo que, na vida real, se trata de um bichinho cheio de virtudes. Até mesmo o Cruzeiro do Sul de nossa bandeira está ao contrário – como se estivéssemos olhando para o nosso céu pelo outro lado da constelação. 

Mas a esperança de que possamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima nunca deixou de dar claros sinais de vida, como bem nos mostra o vitorioso samba-enredo da Mangueira:

 

Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

 

E como é que desviramos esta realidade do avesso, mudamos esta história? Os sonhos, além de sinalizar caminhos de autocura, nos ajudam a imaginar possibilidades completamente novas para modificar nossa realidade presente.

Em O vazio no poder: a reinvenção do ser político (disponível gratuitamente neste link), procurei demonstrar como as mudanças da história são iniciadas por indivíduos que, depois de entrar em contato com alguma ferida latente no mundo, sentem o desejo profundo de se doar para tratá-las. Por acreditar em seus sonhos, criam novos caminhos, onde formam pequenos grupos que se organizam em torno de causas comuns. Esses movimentos crescem, criam e ocupam brechas na sociedade e no sistema político, até que convençam a maioria da sociedade de que este sonho deve fazer parte de seu destino. 

A história do povo Yawanawa ilustra bem esse poder ativador e organizador dos sonhos. Quando um grupo de pastores passou a catequizar e proibir as suas práticas, por anos a fio, dois pajés mantiveram suas práticas espirituais em sigilo, nas profundezas da floresta. Ao longo dos anos, compartilharam seus ensinamentos com o jovem Biraci, incentivando-o a estudar e ir à cidade se formar. Anos depois, Biraci retornou ao seu povo e os convenceu a seguir um novo caminho, que honrasse suas raízes. Os pastores foram expulsos, o álcool, o açúcar e a televisão foram banidos, seus costumes foram resgatados. Hoje, os Yawanawa viajam o mundo compartilhando seus belos cantos e medicinas espirituais, sendo também uma fonte inspiradora para outros povos indígenas. 

Este exemplo de superação mostra que, dentro de nós, estão os recursos de que precisamos para superar a realidade presente e manifestar um futuro radicalmente diferente. 

Neste momento, muitos de nós não desejamos voltar ao “normal”, e estamos sonhando novos sonhos, muitas vezes surpreendentes e até mesmo estranhos. Sonhos noturnos que trazem revelações importantes sobre nós mesmos, e sonhos diurnos de criarmos uma realidade diferente da que vivíamos antes da pandemia. 

Como já dizia o poeta, “sonhar é acordar para dentro”. Os sonhos revelam os desejos da alma de um futuro possível e são uma chave para reconhecermos em nós forças que transformam a realidade. Seja para curar nossas feridas, seja para manifestarmos desejos autênticos ou ainda para encontrar novos caminhos para nos reorganizarmos a favor da vida e do bem viver, os sonhos estão disponíveis para todos nós. 

A cura do Brasil passa necessariamente por contarmos a nós mesmos uma nova história, uma perspectiva que contemple os sonhos de todos. Nossos sonhos merecem o nosso sim. O que nos impede de sonharmos mais alto?

 

Eduardo Rombauer, 40, é cidadão de Paraty (RJ), Mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University, facilitador e consultor em desenvolvimento humano, membro do Fórum do Amanhã e autor de “O Vazio no Poder: a reinvenção do Ser Político”. Site: ​www.eduardorombauer.com

A noite escura da Alma Brasileira

É comum que uma pessoa atravesse períodos longos de escuridão em que se sinta como num buraco, sem a perspectiva de sair. Nestes dias e noites que parecem intermináveis, muitas coisas da vida são colocadas em xeque – quando não o sentido da própria vida.

Esta travessia, bem conhecida por diversas escolas e tradições ancestrais, foi batizada por São João da Cruz (séc XVI) como A Noite Escura da Alma. Ocorre quando, a partir de um ou mais acontecimentos que nos desestruturam, submergimos em um caos interno em que os nossos maiores medos tomam conta da casa. Podemos nos sentir abandonados, aflitos, incompreendidos e despertencendo ao mundo. 

Para os estudiosos da Alma, esta longa noite é na verdade um dos principais portais de evolução pelos quais uma pessoa pode passar. É uma oportunidade de entrarmos em contato com aspectos da realidade interior até então desconhecidos ou negados, de trazê-los à consciência e então superá-los 

Mas este rito de passagem costuma ser pouco compreendido pela civilização ocidental que, ao impor uma lógica materialista sobre as demais cosmovisões, desconhece fenômenos importantes pertencentes à realidade da Alma. Ao invés de nos convidar ao olhar interior, a visão materialista nos receitua panacéias ilusórias, como os antidepressivos e ideologias das mais variadas matizes. 

Um povo também pode atravessar uma noite escura da alma, como já ocorreu com a Alemanha no período entre guerras, com os Estados Unidos durante a guerra do Vietnam, ou com a África do Sul na ocasião do Apartheid. Períodos nos quais situações absurdas reinaram, sem que houvesse perspectiva de alguma resolução para terríveis sofrimentos coletivos. 

Mas, a partir do momento em que aspectos destrutivos destas nações foram reconhecidos e enfrentados, transformações fundamentais ocorreram e estas experiências geraram muitos benefícios em longo prazo. Estas nações saíram destes episódios maiores do que entraram.

Nós, brasileiros, atravessamos um período sombrio. Simbolizado pela usina de Belo Monte, pelas revelações dos esquemas de corrupção, pela lama do Rio Doce e Brumadinho, pelas eleições baseadas em mentiras, por nossas famílias divididas pela polarização política, passando pela normalização da violência para com as minorias e da perseguição de ativistas, pela liberação descontrolada de agrotóxicos, até chegarmos aos devastadores incêndios na floresta Amazônica e às manchas de petróleo. Neste pesadelo coletivo, a maioria de nós se acha impotente. 

Estes desequilíbrios coletivos reverberam diretamente em nossa saúde individual. Eliane Brum retratou, a partir de entrevistas com psicanalistas, psiquiatras e médicos cardiologistas, que há um aumento vertiginoso das ocorrências de depressões, taquicardias e outros sintomas relacionados ao coração, associados principalmente ao desemprego e conflitos familiares que surgem com a polarização política. Como um dos seus entrevistados afirmou, estamos doentes de Brasil

O que pode haver de positivo neste obscurantismo que parece imperar? Que valor pode ter esta noite escura sem fim?

Tanto individual como coletivamente, a Noite Escura da Alma nos oferece a possibilidade de entrar em contato com traços ocultos de personalidade que até então não foram suficientemente alcançados pela consciência. A estes traços inconscientes, mas que regem nossos atos de maneira mais forte do que podemos supor, Jung chamou de Sombras. 

Os vícios e as virtudes de um povo só se manifestam na realidade coletiva porque existem também em nossa vida interior individual. Quando nos damos a oportunidade de ser radicalmente honestos conosco mesmos, certamente reconhecemos algum tom de machismo, autoritarismo, homofobia, racismo ou identidade de classe dentro de nós. O exame individual de consciência nos permite compreender mais precisamente os complexos culturais em que estamos imersos.

E uma vez que nossas sombras emergem à consciência, o que fazer?

A resposta necessariamente passa pela maneira pela qual lidamos com a dor sentida na alma. “Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”, diz Jung. 

Há mais de 20 anos o psicanalista Roberto Gambini vem pesquisando fenômenos da Alma do povo brasileiro. Ele nos alerta que, para tratarmos as nossas desigualdades, violências e injustiças, não basta lutar apenas por mudanças nas condições materiais. Estas mudanças são fundamentais, mas é preciso cuidar também das feridas abertas em nosso inconsciente coletivo. A dor da nossa mãe indígena que teve seu universo interior ignorado, a dor dos africanos escravizados que tiveram toda sua história suprimida, são sofrimentos absolutamente reais e precisam ser tratados. 

Por trás de um homem branco que orgulhosamente se identifica com seu status social e com os bens materiais que possui, embalado por um senso de superioridade perante aos que não possuem os mesmos privilégios, está o mesmo complexo cultural que impede uma mulher negra ter condições dignas de viver. O sofrimento de uma é mais perceptível do que o do outro, porém ambos encontram-se profundamente limitados. Nenhum dos dois desfruta, por exemplo, do sentimento de pleno pertencimento ao seu povo, o que certamente lhes traria maior felicidade.

Portanto, a negação de nossas próprias raízes é algo que dói na Alma, coletivamente. Como, então, curar essas feridas?

A cura das dores anímicas nos convidam, ao invés de buscarmos “resolver o problema” com soluções externas, a entrarmos em contato direto com emoções e sentimentos que costumam ser mais difíceis de reconhecer em nossa vida interior. A rigor não precisamos fazer “nada” além de mergulhar em nós mesmos e adentrar os vazios que estão por trás – ou por baixo – do que nos aflige. 

Esse olhar para dentro é especialmente pertinente para nós Brasileiros, que historicamente fomos condicionados a valorizar mais o que está fora do que o que está dentro. Daí o já conhecido “complexo de vira-latas”, que nos faz sentir inferiores a outros povos e nações. O desconhecimento de nós mesmos talvez seja a grande sombra que precisamos entrar em contato agora.

O olhar negativo que ainda prevalece sobre o vira-latas ilustra como as virtudes da Alma Brasileira são erroneamente desprezadas. “Na penosa construção simbólica de nós mesmos, a tarefa maior é virar o ‘complexo de vira-latas’ do avesso. Transformar em virtude libertadora o que foi antes estigmatizado como capital fraqueza. Recolher a nossa pseudo-maldição e dar-lhe um sinal decididamente positivo”, afirmou Eduardo Giannetti, em seu Elogio do Vira-Lata. 

A boa notícia é que o trabalho já foi iniciado, e está sendo feito por diversas mãos, há algumas gerações. Marechal Rondon e os Irmãos Villas Boas, Mario de Andrade, Tarsila de Amaral e todos os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, Gil e Caetano e os tropicalistas, Gonzaguinha, Milton Santos, Marlui Miranda, Kaká Werá, Ute Craemer e Ailton Krenak são alguns dos que já realizaram feitos significativos a serviço de um necessário redescobrimento do Brasil. 

Toda Alma deseja expressar-se plenamente. E esta Alma Brasileira, que é mestiça, musical, criativa, afetuosa, gentil e formada a partir de um solo tão fértil e biodiverso, guarda tesouros valiosos que só podem ser descobertos na medida em que aprendermos a olhar pra dentro. Em nós habita algo muito mais potente que esta onda avassaladora de ignorância e de separação que nos destrói. 

Sim, o que o Brasil parece ter se tornado nos causa frustração, tristeza, sensação de impotência. Mas esta não é toda a história que temos para contar. Somos agora desafiados a mudar de perspectiva, a lidar de maneira mais consciente com a realidade das emoções e sentimentos, desejos e sonhos, a adentrar nas profundezas para ver as luzes que estão além das sombras. 

A noite escura pode assustar. Mas a atitude de confiar em nós mesmos, de acreditar que sairemos desta travessia maiores do que entramos, pode fazer toda a diferença. Andemos, que a fé não costuma faiá.